Levei um tempo para começar este texto… tempo necessário para digerir as emoções, acalmar as ideias e me agarrar com unhas e dentes aos fatos para transmitir o óbvio: a proposta da PL 1904 é fundamentada em crenças religiosas e fere a Constituição Brasileira.
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Só por isso a proposta que equipara o aborto depois de 22 semanas de gestação ao homicídio deveria morrer antes de entrar em debate. Mas a democracia tem dessas coisas, como uma menina curiosa, ela quer ouvir todos os lados, ainda que um dos lados proponha absurdos ou retrocessos.
E como o assunto é deveras delicado, não vou entrar no debate de quem é a favor ou contra o aborto. A questão é a preocupação político-religiosa em condenar as vítimas antes de dar a elas condições de proteção, acolhimento e justiça.
Resumidamente, a PL 1904 propõe pena de 06 a 20 anos de prisão para as mulheres que interromperem as gestações com mais de 22 semanas, mesmo em casos autorizados por lei.
Ou seja, qualquer mulher ou criança que for estuprada e não conseguir acesso ao aborto legal, se interromper a gestação após 22 semanas, terá uma pena maior que a do estuprador ou pedófilo, cuja penalidade prevista em lei é de 06 a 10 anos de prisão.
Os deputados federais que defendem a PL 1904 dizem que são a favor da vida: – Mas de qual vida estamos falando? – Quais propostas a favor da vida e em caráter de urgência votaram para melhorar o sistema de saúde pública que atende vítimas de abusos sexuais? – Que medidas emergenciais propuseram para ampliar a proteção às vítimas de violência doméstica? – Quais projetos de lei votaram “em frações de segundos” para penalizar ainda mais os pedófilos?
Focar em criminalizar as vítimas, ao invés de caçar e condenar os seus algozes, é cruel, desumano e injustificável. Entendo que seja difícil para muitos políticos compreender a realidade de que, ao assumir um cargo público, não são mais representantes apenas da comunidade que os aplaude numa igreja ou os segue em um quartel.
A atividade política inclui atender aos interesses que realmente podem engrandecer uma nação, significa às vezes ter que abrir mão da fé e olhar apenas para a sociedade, sem metafísica ou paixões. Significa governar para os fortes e também para os mais vulneráveis, aqueles que mais necessitam de uma voz que os defenda em favor de suas vidas.
O que é notório hoje é que o perfil da maioria dos políticos favoráveis à PL 1904 é: homem, branco, casado e privilegiado. Nenhuma dessas características é positiva ou negativa, mas elas denotam uma distância considerável entre quem toma as decisões e quem sofre com elas. Pois o perfil da maioria das vítimas de estupro é: mulher, negra, menor de 13 anos e sem privilégios.
Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública do total de74930 vítimas de estupro e violencia sexual, 56.820 eram vulneráveis (crianças, idosos, pessoas com deficiência, que sofrem de extrema pobreza ou que estão sob efeito de substâncias, etc.). Em porcentagem: – 88,7% eram mulheres; 56,8% são negras; 61,4% têm de 0 a 13 anos; 10,4% têm menos de 4 anos; 68,3% dos casos ocorreram na residência da vítima.
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É importante observar esses dados, porque revelam questões importantíssimas, entre elas a de que a maioria das vítimas de estupro sequer tem consciência do que é uma gravidez. Outro fator que adia a descoberta da gestação é que a maioria dos estupradores está dentro de casa e os algozes tentam ao máximo esconder as provas de seus crimes. E quando finalmente se descobre a gestação, nem preciso reforçar o quão moroso (e às vezes preconceituoso) é o atendimento público às vítimas de estupro. Deixar um projeto desse nível ter continuidade é um perigoso precedente de que, além das mulheres e crianças, a Constituição Brasileira também esteja sendo estuprada.